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Miguel Cardoso ― o Designer irrequieto

    Miguel Cardoso

    PRE-S: Esta entrevista foi realizada em julho do ano transato e estava previsto publicá-la nesse mês. Entretanto, uma alteração na família, que duplicou, forçou-nos a uma pausa neste projeto, que se retoma agora. A vida, como os projetos, pode ser planeada, mas não está imune a mudanças e surpresas.

    A expressão «homem dos 7 ofícios» é perfeita para descrever este meu convidado. Miguel Cardoso é designer, fotógrafo, ilustrador, compositor, realizador, formador e empreendedor, só para enumerar pelo menos 7 dos seus talentos. Fundou, ainda muito jovem, em 1994 a «Terra das Ideias», uma agência de comunicação criativa, com sede em Benavente. Foi lá que nos encontrámos e tivemos a nossa conversa, ao som dos êxitos musicais dos anos 80 e 90.

    Conhecemo-nos, há cerca de 10 anos, quando um amigo comum mo apresentou para colaborar num projeto musical que o Miguel dirigia – a banda Kyrios. Mantivemos contacto estreito, enquanto durou a minha participação na banda, e depois fomos seguindo as pistas um do outro, através de contactos esporádicos na internet.

    Embora conhecesse a atividade profissional do Miguel e alguns dos seus múltiplos talentos, esta conversa foi extremamente rica por me ter permitido conhecer melhor as suas origens e motivações. Porém, o mais marcante nesta entrevista foi o modo como mudou o meu olhar sobre designers e criativos que não têm formação formal e académica em design; na realidade, e o exemplo do Miguel prova-o, existem no mundo muitos designers e criativos absolutamente talentosos e brilhantes que nunca passaram pela academia, mas que são capazes de desenvolver um trabalho prodigioso.

    Tendo em conta que não há nenhuma barreira de acesso à profissão – como, por exemplo, existe para os advogados, médicos e enfermeiros – o que é então necessário para nos tornarmos designers e sermos reconhecidos como tal? A vida profissional do Miguel pode ajudar a responder.

    A culpa foi da matemática

    Comecei, num tom provocador, por perguntar-lhe se em criança já se dava conta dos seus talentos e se já fazia muitas coisas ao mesmo tempo. Disse-me que não se sentia diferente, mas que, na área criativa, era aquele que mais se destacava no desenho, talvez porque dedicasse mais tempo a essa atividade.

    Logo cedo quis estudar Artes e foi nessa área que se inscreveu na escola secundária. Mas, ainda no primeiro período do 10º ano, encontrou um muro que sentia não ser capaz de transpor – a Matemática. Percebendo que não queria ficar prisioneiro dessa disciplina, decidiu, num gesto de ruptura, cancelar a matrícula e iniciar novo ano letivo na área de Humanidades, tendo em conta que era a única que permitia fugir à Matemática. Olhando para trás, reconheceu que, por viver num meio fora dos centros urbanos, o seu percurso académico poderia ter sido diferente, pois, à época, não existia nenhuma oferta de ensino profissional em Artes Gráficas ou algo parecido.

    Confessou que não teve de se esforçar muito durante esse percurso, mas assumiu que não se sentia plenamente realizado com a escolha. Por essa razão, o tempo que lhe sobrava dos estudos dedicava-o à fotografia e à elaboração de alguns cartazes, utilizando as letras decalcadas da Mecanorma, colagens, fotocópias e canetas Rotring para eventos musicais e artísticos, dando os primeiros passos no mundo do design gráfico.

    É em 1992, aos 20 anos, que tem o primeiro contacto com a computação gráfica – coisa rara naqueles dias, especialmente num meio pequeno – e que percebe, mesmo com a contrariedade da escola, que deseja dedicar-se a esta atividade, decidindo procurar os meios para adquirir um computador que servisse para esse trabalho. Dirigiu-se à loja de informática e, ao fazer o pedido, para saber quanto custava este equipamento, recebeu uma proposta um pouco diferente: a loja de informática estava em expansão e o dono, que já havia percebido que a área do design estava a digitalizar-se, propôs uma sociedade ao Miguel para a criação de um departamento de prestação de serviços criativos e gráficos. E foi assim que fundou o seu primeiro estúdio gráfico, chamado «Pátio das Ideias».

    Esta iniciativa durou um ano, mas foi a pedra de esquina para a fundação daquilo que é hoje a «Terra das Ideias».

    O designer autodidata

    Ao fundar a Terra das Ideias fê-lo na certeza de que queria levar aquele trabalho a sério. E o facto de ser ainda pouco experiente e não ter clientes suficientes não o impediu de pôr mãos à obra. Investiu todo o tempo disponível a desenvolver portfólio de projetos fictícios com o intuito de mostrar o que era capaz, para praticar as técnicas e os programas de computador, mas especialmente para superar as suas dificuldades. Então inventou cartazes, folhetos, logótipos, cartões de visita e muitas outras peças de comunicação para mostrar aos seus futuros clientes do que era capaz. Tendo em conta que, nos anos 90, a internet era uma miragem, recordou como adquiria revistas de design estrangeiras para estar a par das tendências e poder, ele próprio, praticar, reproduzindo esses trabalhos. Admitiu que muita da sua formação visual e estética foi conseguida a partir dessas revistas.

    Por esse motivo, declara-se perplexo com a quantidade de designers que lhe chegam a entrevistas de emprego com um fraco portfólio usando a desculpa de que ainda não têm experiência laboral para mostrarem mais trabalhos. E é, de alguma forma, uma crítica justa, tendo em conta que esta é uma área profissional onde a demonstração de competências técnicas e criativas se faz através do trabalho produzido e onde não há limites nem constrangimentos à imaginação.

    Disse ainda que se, à época, não sentia qualquer tipo de complexo, por não ter formação especializada, hoje, então, após uma carreira de 20 anos na indústria, o valor do seu trabalho é maior que qualquer canudo. Mas, como esclareceu, isso se deve a um espírito empreendedor, de constante aprendizagem e empenho em superar as suas dificuldades, não lhe servindo de desculpa para não ir mais além.

    A agência de província que compete com as agências da cidade

    Começou por dizer que o crescimento da Terras das Ideias foi orgânico e que nunca fez planos para competir com as grandes agências de design. Mas, ainda nos anos 90, foi responsável pelo design da capa de um disco de uma banda o qual foi o motor para passar a ser contactado pelas grandes editoras de música à época.

    Após esse contacto, outros se seguiram e em pouco tempo era pela Terra das Ideias que passavam muitas das capas de discos de artistas das maiores editoras do mercado, como a Sony-BMG, Farol, EMI, entre outras.

    Além disso, a sua agência especializou-se num outro segmento de mercado, os produtos de livro e música infantil, tendo como principal cliente a conhecida editora Zero-a-Oito. Recordou que, em tempos, «o top 10 dos produtos infantis da Fnac, pelo menos 8 deles haviam sido desenhados e produzidos» pela sua agência.

    Lembremo-nos que estávamos a meio dos anos 90 quando o Miguel fundou a sua agência criativa e que a internet ainda era quase uma utopia em Portugal. Por isso, para uma empresa pequena na província querer conquistar grandes clientes teria de se esforçar muito mais, especialmente em contrariar a distância entre cliente e agência. Assim, contou como, ainda no princípio da primeira década dos anos 2000, criou uma ferramenta de partilha de ficheiros – como o Dropbox ou Google Drive – que colocou à disposição dos clientes. Isso permitia-lhe encurtar a distância e o tempo de decisão e aprovação dos trabalhos pois, sempre que eram colocados novos ficheiros nessa pasta partilhada, o cliente recebia uma notificação por email. Muitos eram os clientes que elogiavam este método de trabalho, dizendo-lhe que conseguiam trabalhar mais depressa, estando em Benavente, do que com outras agências, em Lisboa.

    O Miguel falou de algumas vantagens de trabalhar fora de Lisboa, como um custo de vida mais baixo, que pode refletir-se-se no preço a cobrar. Mas explicou que a maior dificuldade que sentiu, durante algum tempo, foi o recrutamento tendo em conta que nem todos ambicionam trabalhar fora da cidade e que os custos de deslocação pesam na decisão. Ainda assim, disse que sempre foi capaz de encontrar colaboradores talentosos para a agência e que, hoje, porque ainda se vive num ambiente de pouca oferta de trabalho, não fica com vagas por preencher.

    Os talentos, o desejo incessante de trabalhar e o insucesso

    Tem sido debaixo deste pensamento que o Miguel tem vivido. Ainda que não se sinta sobredotado ou especial em relação aos outros, explica que, quando encontra uma nova atividade de que gosta, esforça-se muito por aprendê-la, dedicando-se e trabalhando arduamente, fazendo-o com prazer e de forma natural. Aliás, foi assim que iniciou a sua carreira e nunca deixou de pesquisar e de satisfazer a curiosidade, quando outros, como lamentou, que tiveram estudos universitários e demais formações, acham que já sabem tudo e não investem em novas competências.

    Não significa com isto que seja capaz de aprender tudo e ser o melhor em todas as áreas; mas, quando tal sucede, procura alternativas de forma a, ainda assim, poder incluir-se e participar.

    Contou ainda como habitualmente motiva aqueles que lhe estão perto a evoluírem nas suas competências, expandido os conhecimentos e aplicando-os em novos projetos.

    Por mais de uma vez, durante a nossa conversa, o Miguel admitiu que tem uma «autoestima massajada» e que não se deixa ir abaixo com as dificuldades. Desse modo, respondeu, com naturalidade, quem tem iniciativa para realizar coisas e espírito empreendedor terá sempre que passar pelo insucesso. O mal para si não é o insucesso, mas a repetição dos erros ou a sensação de não ter aprendido nada com isso. Assim, prefere olhar para o insucesso de uma perspectiva construtiva, para aprender a não repetir o erro, de modo que, no final, corresponda a uma oportunidade de crescimento pessoal.

    A fé e o trabalho

    «Depois de ganharmos o Euro, com o Fernando Santos, agora estou com as costas quentíssimas!» – respondeu, com uma sonora gargalhada, quando lhe pedi para comentar a sua relação com a fé e o trabalho.

    O Miguel é um homem de fé e não tem medo de o assumir e demonstrar. Começou por afirmar que tem Deus como o farol da sua vida e que é Ele que ilumina todas as áreas, desde a família, aos amigos e, claro está, o trabalho. Explicou, ainda, que difícil para ele seria esconder essa luz e que são estes os projetos que mais prazer lhe dão.

    Contou também, em tom de graça, como alguns dos seus clientes acham algo extravagante estar, num dia, a fotografar um artista conhecido, para a capa de um CD, e, no outro, estar envolvido num projeto religioso ou, a seguir, estar a discutir um APP para uma marca conhecida e na apresentação de um jogo de computador, relacionado com o Santuário de Fátima; porém, para o Miguel, todos esses projetos são instrumentos para desenvolver competências que também pode aplicar na projeção da sua fé.

    Desde a fundação da Terra das Ideias que tem mantido laços estreitos de trabalho com várias organizações ligadas à Igreja Católica, desde os Escuteiros, ao Santuário de Fátima e à pastoral da Juventude, entre outras. Recordou como a imagem destas instituições era (às vezes ainda é) descuidada e como se sente feliz por contribuir para a sua melhoria; pese embora o muito que ainda há por fazer, hoje já é encarado, dentro do seio dessas organizações, como uma necessidade de se profissionalizar este trabalho.

    Por outro lado, não sente que estes sejam clientes pouco apetecíveis ou muito difíceis de trabalhar. Foi com muito investimento pessoal que foi ganhando a confiança dos responsáveis religiosos, mostrando credibilidade e segurança nas propostas criativas, pois é necessário compreender bem os fins destas organizações. O sucesso desta relação traduz-se em hoje a Igreja – entenda-se, as muitas organizações de que se compõe a Igreja Católica – ser o melhor cliente da sua agência, o que, para si, é de grande orgulho e valor, sentindo que, deste modo, cumpre a comissão de Jesus de «ide por todo o mundo e pregai o Evangelho».

    Conclusão

    Esta entrevista foi a mais longa, até agora realizada, com cerca de 2 horas. Talvez porque o Miguel tem mais um talento a acrescentar – é um excelente conversador. Com ele, não há tempos mortos e o diálogo flui com facilidade.

    Há no Miguel uma inquietude, com a qual me identifico, uma vontade de fazer, pôr as mãos à obra sem estar à espera de que outros se juntem ou que todas as condições sejam perfeitas para começar.

    Tendo em conta que o empreendedorismo nunca foi tão valorizado como nos dias de hoje, o exemplo do Miguel Cardoso pode servir de inspiração.

    Miguel Cardoso

    Designer e fundador da «Terra das Ideias»

    https://www.terradasideias.com/v10/