Transformação digital. O mundo Depois-do-Coronavírus.

Daqui a uns meses poderemos dizer que existia um mundo AdC e DdC – Antes-do-Coronavírus e Depois-do-Coronavírus. Há quantos anos andamos a adiar importantes transformações digitais sob falsos pressupostos e preconceitos?

Escrito com ❤️ a

8 de Abril, 2020

Há décadas que escutamos sobre transformação digital. Lembro-me, ainda nos anos 90 quando a Internet dava os primeiros passos, que se dizia que com esta tecnologia seria possível fazer tudo a partir de casa. Literalmente tudo, asseguravam. Recordo-me bem da minha primeira compra on-line, provavelmente entre 98 e 99, em que utilizei um serviço de pagamento que se chamava MB Net, que gerava um cartão de crédito temporário associado ao nosso cartão multibanco. Complicado? Nem por isso! O serviço era fiável e de fácil utilização. Complicado à época era convencer as pessoas a aderir às compras on-line. Embora já se tenha percorrido um longo caminho, menos de metade da população portuguesa fez uma compra on-line em 2018.

Navegar na Internet exigia paciência. A Amazon dava os primeiros passos. As redes sociais como hoje as conhecemos ainda não haviam sido inventadas, embora se comunicasse e muito via Internet nos fóruns e salas de chat. O jornalismo on-line era uma miragem embora quase no virar do milénio a Rádio Renascença já transmitisse a sua emissão por esta via. Não se colocava nesse tempo questões relativas à privacidade dos dados. E já na altura se prometia teletrabalho ou trabalho remoto para todos pois tudo se poderia fazer através de e-mail.

Passaram-se trinta anos e ficamos abismados com o quanto mudou ao mesmo tempo com o quanto falta mudar. Ficamos impressionados com o que ganhamos e com o que perdemos, enquanto deve preocupar-nos o que ainda falta ganhar e o que ainda iremos perder. Exemplos de ganhos: parte da vida e dos negócios ficou mais fácil e a tecnologia democratizou-se de tal forma que até uma pequena organização pode competir com um concorrente mais antigo, mais poderoso e mais capitalizado. Por outro lado, perdemos privacidade e andamos sobrecarregados de informação, sendo hoje difícil distinguir a verdadeira da falsa.

A transformação digital tem acontecido de duas formas: por imposição ou consequência natural de um processo de melhoria e evolução continua.
Neste sentido, podemos afirmar que seja em grandes ou pequenas organização, públicas ou privadas, vemos que ambas as situações ocorrem em simultâneo. E tal acontece pelas vicissitudes do tempo em que se vive, por uma maior exigência do consumidor/cidadão, por concorrência, por motivos externos e incontroláveis, por redução de custos, por aumento dos lucros, por avanço do conhecimento, por motivações políticas, etc.. Observamos isso em múltiplos exemplos, não importa os sectores e o quão avançadas estão essas organizações do ponto de vista tecnológico.

Quer melhor exemplo de uma transformação digital por imposição do que esta crise? Há quantos anos se fala em escola à distância, trabalho remoto, mais comércio on-line com entregas rápidas e baratas em casa? E há quantos anos se diz que é complicado, que os alunos não vão aprender, que os trabalhadores não serão produtivos, que a tecnologia de trabalho remoto é muito cara e complexa, que dificilmente se consegue ter reuniões produtivas à distância, que a televisão e a rádio só se fazem em modernos e caros estúdios? Há quantos anos andamos a adiar estas mudanças sob falsos pressupostos e preconceitos? De certo modo, daqui a uns meses poderemos dizer que existia um mundo AdC e DdC – Antes-do-Coronavírus e Depois-do-Coronavírus.

Seja por imposição ou consequência natural, para liderar ou implementar algum tipo de transformação digital – seja ela de que dimensão for – é preciso, na minha opinião, definir um rumo para a organização. É necessário entender o que se passa à volta – sejam as oportunidades e as ameaças –, o que se quer mudar, como se fará a mudança, com que objetivos, quais as consequências e quais os resultados expectáveis. Quanto melhor estiver definido o rumo da mudança menos resistência existirá: seja ela do lado da organização/colaboradores seja do lado dos clientes/cidadãos/utilizadores.

Definido o rumo e escolhida a tecnologia é necessário formar e consciencializar os utilizadores dela. Este é talvez o maior desafio. Um exemplo é o IPad, que foi lançado anos mais tarde que o iPhone, porque segundo Steve Jobs as pessoas não estariam suficientemente preparadas para aquele equipamento. E dentro desta categoria de lançamentos falhados de equipamentos tecnológicos demasiados avançados para a época está a história cheia. Antes do iPad, já a Microsoft havia apresentado um dispositivo semelhante, mas sem sucesso.

Tal como dizia, é preciso formar e consciencializar as pessoas. Este é o maior desafio. Pode-se impor uma tecnologia às pessoas, mas isso não significa que seja utilizada corretamente ou tirado partido de todo o seu potencial. Não basta pôr nas mãos dos utilizadores potentes computadores ou sofisticados softwares para que eles por si só aproveitem todo o potencial, que se tornem mais eficientes ou produtivos.

A formação, as más escolhas tecnológicas e a falta de preparação para a mudança são na minha opinião os grandes pecados que muitas organizações cometem e que tornam todo o processo mais difícil. Para ser mais claro, não é só colocar os trabalhadores em trabalho remoto para se fazer parte da transformação digital. Porque as condições de trabalho remoto são diferentes das condições de trabalho num local físico e fixo, é necessário preparar as pessoas para essa nova realidade. Eis alguns exemplos simples dos desafios que hoje as organizações pouco preparadas enfrentam com o trabalho remoto:

  • A forma de comunicar é diferente; é preciso um maior esforço de comunicação para garantir que toda a organização está devidamente informada e alinhada;
  • É preciso um outro tipo de serviços de partilha de documentos ou ficheiros, que não passe pelo alojamento em computadores pessoais ou redes locais;
  • O método de revisão ou assinaturas de documentos tem de se desmaterializar, isto é, não pode depender da presença física das pessoas;
  • As organizações terão de aprender rapidamente a trabalhar assincronicamente, isto é, em que as equipas não dependem de terem todos elementos reunidos ou das chefias para a tomada de ação e decisão; a tomada de decisão terá de ser muitas vezes individual e para tal a organização tem de garantir que cada colaborador e membro de uma equipa está capacitado para isso;
  • E ainda terá de existir um maior acompanhamento aos colaboradores que se encontram mais isolados e mais susceptíveis a quebras de performance.

A transformação digital impôs-se e agora é forçoso um ajuste de mentalidades e procedimentos. Esta transformação digital, que agora vivemos terá maior ou menor sucesso dependendo do quanto as pessoas fazem parte e adoptam os novos processos de trabalho e ferramentas para si.

Daqui a pouco tempo, quando o mundo voltar à normalidade, vamos ser capazes de entender o quanto esta crise mudou o trabalho, os negócios e os relacionamentos dentro das organizações. Provavelmente, muitas pessoas questionar-se-ão se fará sentido ou não continuarem a deslocar-se para os seus empregos para fazerem aquilo que fazem bem ou melhor em casa, se o micromanagement é realmente eficaz, se as reuniões presenciais não poderão ser substituídas por outras formas de gerir o tempo e planear os projetos e se a comunicação não terá melhorado, havendo mais partilha de informação e um registo mais eficiente da mesma.

Prepare-se para o mundo Depois-do-Coronavírus!

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