Sou um fã de música. Passo muito tempo a escutar música de forma atenta e crítica. Faço playlists temáticas pelo puro prazer de selecionar músicas que me façam lembrar um assunto ou um estado de alma. Vejo até vídeos sobre composição ou teoria musical, não tendo eu qualquer formação na área, só para compreender melhor como um determinado acorde ou arranjo musical faz toda a diferença numa determinada música. E não perco um bom documentário sobre história da música.
A minha forma favorita de escutar música é em formato de vinil. Infelizmente não herdei nenhuma coleção de discos. Assim passei muitos anos a namora-los nas feiras de rua. Porém, tudo mudou quando a minha mulher me ofereceu um gira-discos numa daquelas prendas de Natal que era impossível de antecipar. Assim, de há 3 anos para cá tenho comprados vários discos, novos e usados, e a excitação de ter esse objeto nas mãos é semelhante a uma criança que recebe um brinquedo novo.
Para alguém como eu que faz praticamente todo o seu trabalho em formato digital o disco de vinil traz-me de volta ao mundo palpável. Antigamente a profissão de designer era bastante mais manual. Fazer um cartaz implicava montagem de fotos e ilustrações com decalques de letras, só para dar um exemplo. Um tipógrafo, por exemplo, para escrever uma frase tinha de o fazer utilizando caracteres de metal, alinhando as letras das palavras ao mesmo tempo que fazia contas para antever se a palavra no final da linha ficava inteira ou era necessário parti-la para a linha seguinte. Se percebesse que lhe ficava a sobrar algum espaço tinha de ajustar o espaçamento das letras manualmente afastando-as gentilmente. A mesma coisa com o fotografo. Havia todo um ritual na seleção do tipo de filme a usar, no gesto de rodar aquela pequena alavanca para avançar para a foto seguinte, até ao momento em que, no escuto, se revelava o resultado.
A consciência das limitações era real e tornava as decisões muito mais ponderadas: o fotografo sabia que tinha 24 fotografias naquele rolo e que quando acabasse, não havia volta a dar… O tipógrafo sabia que tinha duas ou três famílias de letras para escolher e que quando iniciasse o trabalho não havia grande margem de manobra para experimentalismos, pois isso implicava, literalmente, desmontar todas as letras que havia juntado.
O mundo analógico exigia um maior sentido de abstração, de planeamento, de antecipação para vislumbrar o resultado final que estava na mente do criativo.
É por isso que gosto do vinil. Ele lembra-me as limitações do mundo analógico. Lembra-me que o tempo é uma linha continua e não algo que se passe para a frente em fast-forward; que na vida não existe repeat infinito e até à exaustão, pois quando o disco de vinil termina é necessário voltar a colocar a agulha no lugar, ou seja, exige que eu tome que ação; o vinil, sobretudo aqueles de produção mais antiga ou clássica, lembra-me que a música não é plana, tem muitos alto e baixos, tal qual como a criatividade – e nos dias em que está mais em baixo temos de nos concentrar e estar mais atentos ao que ouvimos, vemos e sentimos. O vinil faz-me ser paciente e tolerante com as músicas que menos gosto, mantendo a antecipação para a chegada daquela música preferida. O disco de vinil é também um ótimo instrumento para me concentrar: por exemplo, muitas vezes desafio-me para completar uma determinada tarefa no tempo exato de um disco, mesmo contando o tempo necessário para o virar. (Por exemplo, este texto foi escrito no tempo exato do disco que estava a escutar!)
Eu creio que, num mundo cada vez mais desmaterializado, voltar ao que é físico e palpável é bom para os nossos sentidos. Todos eles, desde o toque ao olfato, passando pela visão e audição. As sensações produzidas por cada um destes sentidos aguçam a curiosidade, a criatividade, o engenho e o assombro.
Por isso, se há muito tempo que não dá uso aqueles discos antigos nem ao seu gira-discos, então espero que este texto tenha despertado em si a vontade de voltar a dar-lhes uso.